A Interpol estava procurando um executivo financeiro desacreditado há semanas quando Christo Grozev, um jornalista investigativo, o encontrou escondido em Belarus. Grozev havia se tornado especialista em seguir rastros digitais quase invisíveis — dados de celulares do mercado negro, listas de ageiros, registros de imigração — para desmascarar espiões russos. Eram os agentes adormecidos que viviam em países ocidentais e se avam por nativos, ou as pessoas enviadas para caçar dissidentes ao redor do mundo.
Ele identificou os agentes da polícia secreta por trás de um dos planos de assassinato mais notórios de todos: o envenenamento do líder da oposição russa Alexei Navalni, em 2020. Essa revelação colocou Grozev na mira do presidente Vladimir Putin. Ele queria que Grozev fosse morto e, para que isso acontecesse, o Kremlin recorreu a ninguém menos que o próprio financista fugitivo, que, ao que parece, havia sido recrutado pela inteligência russa. Então, o homem que Grozev vinha rastreando começou a rastreá-lo. O fugitivo recrutou uma equipe para iniciar a vigilância.
Os membros dessa equipe estão atrás das grades agora. O financista mora em Moscou, onde visita a sede da polícia secreta russa várias vezes por semana. Grozev — ainda bem vivo — imagina o homem tentando explicar aos seus supervisores por que falhou em sua missão. Isso dá a Grozev uma pequena dose de satisfação.

Em 12 de maio, após um longo julgamento, o juiz Nicholas Hilliard, do Tribunal Penal Central de Londres, condenou seis pessoas, todas de nacionalidade búlgara, a penas de prisão entre cinco e quase 11 anos por seu envolvimento no complô para ass Grozev, entre outras operações. O grupo havia ado mais de dois anos atuando na Inglaterra, onde o líder mantinha salas cheias de documentos de identidade falsos e o que a promotoria chamou de equipamento de vigilância de nível policial. Além de espionar Grozev e seu parceiro de escrita, o jornalista russo Roman Dobrokhotov, os búlgaros espionaram uma base militar americana na Alemanha, onde soldados ucranianos eram treinados; eles rastrearam um ex-policial russo que havia fugido para a Europa; e, o mais embaraçoso para Moscou, planejaram uma operação de bandeira falsa contra o Cazaquistão, um aliado russo.
Nas duas décadas mais recentes, a Inglaterra foi palco de pelo menos duas operações mortais de destaque e mais de uma dezena de outras mortes suspeitas que foram ligadas à Rússia. No entanto, o julgamento dessa célula de seis pessoas parece ser a primeira vez na história recente que as autoridades investigaram e processaram com sucesso agentes russos que operavam em solo britânico. O julgamento e seu resultado, portanto, são vitórias. Pequenas, porém, em relação à escala da ameaça. Os búlgaros parecem ser apenas uma parte de uma operação plurianual e multinacional para matar Grozev. Isso, por sua vez, é apenas uma pequena parte do que parece ser uma campanha cada vez mais ampla do Kremlin, incluindo sequestros, envenenamentos, incêndios criminosos e ataques terroristas, para silenciar seus oponentes e semear o medo no exterior.
A história dos recursos que foram mobilizados para silenciar uma única voz inconveniente é um lembrete aterrorizante do que são capazes Putin e, além dele, a nova geração de governantes autocráticos. A história de como aquela voz única se recusou a ser silenciada — e, na verdade, redobrou sua determinação em dizer a verdade, independentemente das consequências reais — serve como um lembrete de que é possível continuar a falar e agir diante do perigo mortal. Mas o dano causado à própria vida de Grozev e às vidas das pessoas ao seu redor é um aviso de quão vulneráveis somos diante de um poder assassino e descontrolado.
Uma década atrás, Grozev, como grande parte do mundo, ficou chocado quando um avião de ageiros malaio foi abatido sobre o leste da Ucrânia, matando todas as 298 pessoas a bordo. Rússia e Ucrânia imediatamente se culparam mutuamente, a Rússia desencadeou uma torrente de desinformação e o Ocidente pareceu confuso. Na época, Grozev morava em Viena e ajudava a istrar uma empresa proprietária de uma série de estações de rádio. Mas ele sempre fora acometido por uma fome insaciável por informação. Quando o governo comunista da Bulgária caiu, ele invadiu uma das embaixadas de seu país e ou duas semanas lendo pilhas de documentos marcados como “queimar depois de ler” (“Todos na embaixada estavam dedurando uns aos outros”, ele me contou mais tarde). Ele só parou quando a polícia apareceu.
Quando o avião malaio caiu em julho de 2014, ele começou a consultar o Flightradar24, um serviço online que rastreia o movimento de aeronaves ao redor do mundo, e rapidamente caiu em um redemoinho.
Seu fascínio pelo Flightradar24 impulsionou a segunda carreira de Grozev. Ele ingressou na Bellingcat, uma agência inovadora que praticava um novo tipo de investigação de código aberto. Usando dados de geolocalização e um acervo de vídeos e fotografias de diversas fontes, a equipe da Bellingcat localizou o lançador de mísseis usado para derrubar o avião, traçou sua rota da Rússia até o leste da Ucrânia, identificou oficiais de inteligência militar russos de alto escalão envolvidos e, por fim, determinou que a Rússia era responsável pela derrubada do avião malaio, uma descoberta posteriormente confirmada por investigadores profissionais e pelas Nações Unidas.

Em investigações posteriores, Grozev expandiu seu conjunto de ferramentas para incluir bancos de dados do mercado negro, como dados de aportes russos e registros de celulares, o que lhe permitiu identificar os oficiais de inteligência militar russos que provavelmente envenenaram o desertor Sergei Skripal e sua filha Yulia na Inglaterra em 2018. No ano seguinte, quando um ex-líder rebelde checheno foi morto a tiros em plena luz do dia em um parque em Berlim, Grozev utilizou dados de aporte e viagens, bem como uma análise aprofundada de registros do governo russo, para identificar o assassino, Vadim Krasikov, um cidadão russo que posteriormente foi condenado pelo crime na Alemanha. E em 2020, quando Navalny, o herói da oposição russa, quase foi morto por envenenamento, Grozev utilizou um enorme conjunto de dados de reservas aéreas para identificar um grupo de homens que o seguia há pelo menos três anos e, em seguida, rastreou-os até um laboratório de pesquisa de armas químicas istrado pela polícia secreta em Moscou.
A maioria dos grandes empreendimentos da vida de Grozev envolve Karl von Habsburg, seu melhor amigo, que, num detalhe narrativo que não destoa do caráter romanesco da vida de Grozev, é neto do último imperador austro-húngaro, Carlos I. Juntos, Grozev e von Habsburg cavalgaram até Timbuktu, no Mali, com tropas que libertaram a cidade dos rebeldes islâmicos. Em outra ocasião, fundaram a primeira estação de rádio em língua ucraniana na Ucrânia. Por volta de 2020, von Habsburg havia se conectado com um grupo de cineastas. A busca de Grozev pelos supostos assassinos de Navalny parecia dar um ótimo documentário, então a equipe foi até a Alemanha, onde Navalny estava em reabilitação.
Em 14 de dezembro de 2020, o Bellingcat copublicou as descobertas de Grozev a respeito dos responsáveis pelo ataque a Navalny.
No mesmo dia, o executivo financeiro desonrado que havia sido recrutado pela inteligência russa contratou uma equipe para seguir Grozev. Esse financista era Jan Marsalek, que havia ganhado notoriedade internacional quando sua fintech, a Wirecard, foi consumida por um dos maiores escândalos financeiros da história europeia. Cerca de US$ 2 bilhões tinham desaparecido. O diretor-executivo da empresa foi preso. Marsalek, um homem de 40 anos, impecavelmente vestido, que havia atuado como diretor de operações da empresa, desapareceu.
Ele era uma escolha lógica para a missão do Kremlin. Como fugitivo do Ocidente, tinha um forte incentivo para permanecer nas boas graças de Putin, custasse o que custasse. E como austríaco nascido em Viena, Marsalek conhecia bem a cidade onde seu alvo, Grozev, estava morando.
A primeira vez que conheci Grozev pessoalmente foi em 2023, na exibição de “Navalny”, o documentário que teve início com sua investigação, em Nova York. Ele aparece com destaque: seus 1,90 m, 90 kg e tantos de nerdice entusiasmada. Mais tarde naquela noite, a polícia informou Grozev de que sua vida estava em perigo e que ele não deveria voltar para casa em Viena. A essa altura, os búlgaros o estavam rastreando há mais de dois anos. Um amigo hospedou Grozev em uma casa em Manhattan, e ele começou sua vida no exílio.
Algumas semanas depois, a produtora Geralyn Dreyfous o levou a um evento para a fundação beneficente de Amal e George Clooney. Ao entrarem, Grozev olhou para o celular. Sua irmã, que mora na Bulgária, havia enviado uma mensagem de texto dizendo que não conseguira falar com o pai deles, que morava em Viena. “Ele empalideceu”, me contou Dreyfous. “E naquele momento George Clooney estava lá para nos receber. Christo se afastou, eu contei a George Clooney o que tinha acontecido e ele imediatamente se dirigiu a Christo: ‘Você não pode voltar para lá. É tudo um estratagema para fazer você voltar’.”
A polícia encontrou o pai de Grozev morto em sua casa. Dois dias depois, a Polícia Metropolitana de Londres prendeu cinco cidadãos búlgaros que, segundo eles, estavam vigiando Grozev e seu parceiro de escrita, Dobrokhotov. Apesar do sábio conselho do astro de cinema e da severa advertência das autoridades policiais, Grozev de fato retornou a Viena — “em um avião de carga com destino a um país vizinho, para não deixar rastros”, contou-me por mensagem de texto. As autoridades austríacas não concluíram que o pai de Grozev tivesse sido vítima de crime. A família não teve o ao corpo dele.
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Quando morava na Rússia, Dobrokhotov havia perdido alguns empregos no jornalismo, aparentemente por ser franco demais, certa vez gritando com Dmitri Medvedev, então presidente da Rússia, contra a censura e as políticas “vergonhosas”. Assim, em 2013, Dobrokhotov lançou sua própria publicação, The Insider, que se tornou uma publicação notável misturando análises e reportagens investigativas abrangentes, muitas delas coescritas por Dobrokhotov e Grozev. “Eles são unidos como gêmeos siameses”, disse Dreyfous, a produtora. Parecem pensar em uníssono.
No verão de 2021, a Rússia reprimiu jornalistas independentes, no que, em retrospecto, parece ter sido uma forma de limpar o terreno antes da invasão em larga escala da Ucrânia. A polícia apreendeu os aparelhos eletrônicos e o aporte de Dobrokhotov. Então, ele deixou a Rússia — a pé, caminhando pela floresta até a Ucrânia, carregando apenas uma pequena mochila com algumas roupas, um livro acadêmico e uma garrafa de conhaque Hennessy. Sua família se juntou a ele mais tarde e todos se estabeleceram no Reino Unido.
Naquela época, uma das búlgaras da equipe, Vanya Gaberova, uma jovem de longos cabelos castanhos, adicionou Dobrokhotov como amizade no Facebook. “É muito fácil fazer amizade com Roman se você for bonita”, observou Grozev. Quando a mesma mulher enviou uma solicitação de amizade para Grozev, ele viu que ela tinha algumas conexões com pessoas de sua rede, então aceitou o pedido também.
Orlin Roussev, chefe da célula de espionagem, e seu agente em Moscou, Marsalek, discutiram o uso da nova conexão do Facebook para seduzir Grozev e talvez fazer um vídeo comprometedor. “Com certeza podemos gravar algo para o Pornhub também”, Roussev enviou uma mensagem de texto. Marsalek aconselhou cautela. “Espero que ela não se apaixone por ele. Já tive esse problema com uma armadilha desse tipo” (de acordo com as investigações de Grozev, o trabalho de Marsalek para a inteligência russa começou quando ele próprio foi apanhado em armadilhas de sedução).
Se Gaberova fez alguma tentativa de seduzir Grozev, ele não percebeu. Seu filho, Chris, um estudante de medicina, o diagnostica casualmente como “um garoto com TDAH” e “definitivamente autista”. Os amigos de Grozev descrevem sua incrível capacidade de ver conexões. “Ele olha para uma tabela do Excel com 300 linhas e 90 colunas e imediatamente identifica um padrão que eu levaria três horas para identificar”, disse-me Maria Pevchikh, que era uma colaboradora próxima de Navalny. “Ele consegue enxergar estruturas que outros não conseguem ver”, disse von Habsburg. “É como um caçador de trufas.” Mas ele frequentemente ignora as ações e os sentimentos das mulheres, incluindo a própria cônjuge, com quem foi casado por três décadas.
Grozev teve o bom senso de se casar com uma mulher que, segundo todos os relatos, tem o temperamento oposto ao seu (a mulher, Stefka Grozeva, recusou-se a falar comigo para esta matéria). Em contraste com seu marido impulsivo, aventureiro e inquieto, ela é estável, apegada a regras e introvertida. Trabalhou como contadora durante a maior parte de sua vida adulta.
No filme “Navalny”, Grozev confessa ter gasto mais de US$ 150.000 em bancos de dados do mercado negro e diz que, se sua mulher soubesse, “ela não seria casada comigo”. Ele não pareceu considerar que ela eventualmente assistiria ao filme. E quando chegou a hora de ambos comparecerem à estreia em Copenhague, ele se esqueceu de avisá-la.
Ao final da exibição, ela reservou um táxi separado de volta para o hotel. Meses depois, Grozev me disse que a mulher não estava falando com ele, embora ocasionalmente concordasse em comparecer a eventos ao seu lado. Ele parecia perplexo.
Mais de um ano depois da estreia, Grozev me contou, entusiasmado, que havia descoberto o que incomodava Stefka: aquela fala no filme a transformara em alvo de piada. Ele começou a dizer aos entrevistadores que não havia nada de engraçado em ter enganado a esposa. “Descobri o que houve e consertei!”, disse-me.
No verão de 2023, Grozev fez uma descoberta em seu próprio caso. Grozev trabalha analisando enormes quantidades de dados. Ele pode começar vasculhando registros de celulares para traçar um panorama da vida de um suspeito de espionagem: nunca começa a trabalhar antes das 10 horas, sempre liga para os pais aos domingos. Depois, ele pode se concentrar em eventos telefônicos anômalos, como uma ligação de trabalho no fim de semana, para reconstruir a cronologia das viagens e ações da pessoa.

Como parte de seu projeto contínuo de identificar espiões russos, Grozev estava de olho em um homem chamado Stanislav Petlinsky há muito tempo. Agora com pouco mais de 60 anos, Petlinsky parece ter sido preparado para o cargo desde a infância, como os personagens da série de televisão “The Americans”. Ele havia ado a maior parte de sua vida adulta fora da Rússia, mas Grozev percebeu que ainda tinha um número de celular russo e que uma pessoa que tinha o a esse número — talvez a assistente de Petlinsky? — o estava usando para agendar consultas para alguém em um laboratório médico em Moscou.
Usando um vazamento massivo de dados médicos russos, Grozev localizou os registros do laboratório e encontrou vários pacientes conectados ao número. Um deles era Alexander Ivanovich Schmidt — um sobrenome visivelmente germânico, observou ele. O registro de Schmidt listava uma data de nascimento com uma semana de diferença da de Marsalek, o financista fugitivo. Grozev já havia observado há muito tempo que as identidades falsas da inteligência russa tendem a usar uma data de nascimento falsificada que se enquadra no mesmo signo do zodíaco que a data de nascimento real da pessoa. Era uma pista.
De acordo com os registros do laboratório de Moscou, que ele analisou com a ajuda de seu filho, Chris, o paciente chamado Schmidt estava verificando os níveis de glicose no seu sangue. Outra pista: colegas da Der Spiegel, a revista alemã com a qual Grozev colabora frequentemente, confirmaram que Marsalek tinha diabetes.
Grozev também verificou os registros de companhias aéreas. Um tal de Alexander Schmidt, nascido no dia listado no prontuário médico do laboratório, estava usando um aporte francês para viajar em companhias aéreas russas — inclusive, segundo uma fonte disse a Grozev, em viagens à Líbia, onde Marsalek investiu em uma fábrica de cimento.
Grozev sabia que havia encontrado Marsalek. E a melhor parte, ele me disse, era que havia feito isso da maneira que, quando criança, imaginara que Sherlock Holmes teria usado para encontrado alguém.
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A partir do inverno de 2022, Grozev usou suas muitas conexões de bastidores para ajudar a negociar o que se tornaria a maior troca de prisioneiros entre o Leste e o Oeste desde a Guerra Fria: a troca que libertaria o repórter do Wall Street Journal, Evan Gershkovich, e outros 15 de prisões na Rússia e na Bielorrússia. O principal objetivo de Grozev era libertar Navalny, que estava atrás das grades há um ano. Grozev desejava tanto esse resultado que, apesar de todo o seu poder analítico, chegou a acreditar em Petlinsky, o superespião, quando este disse que poderia ajudar a concretizar a ideia. Mas era tudo mentira.
Em fevereiro de 2024, Navalny morreu em uma prisão russa. Grozev e eu nos encontramos alguns dias depois, no mais deprimente de todos os lugares estranhos onde almoçamos no ano anterior: a praça de alimentação do Brookfield Place, um shopping de luxo em Lower Manhattan. Era tão estéril quanto o apartamento que Grozev estava alugando na época, uma daquelas alternativas de hotéis mobiliados.
Ele oscilava entre duas explicações diferentes para o que ambos presumimos ter sido um assassinato. Navalny teria sido morto para impedir que negociadores ocidentais insistissem em sua libertação? E, se sim, Grozev teria sido de alguma forma culpado? Ou o assassinato teria sido parte de uma escalada do ataque de Putin aos dissidentes, um sinal de que ele não se importava mais com a mínima possibilidade de negação? “Se for o início de uma nova onda, isso é realmente assustador”, disse ele, “porque afetará pessoas como nós”.
Ele não precisou explicar o que queria dizer. Minha conexão com Grozev é mais do que apenas jornalística. Compartilhamos o vínculo de sermos persona non grata na Rússia de Putin, assim como centenas de outras pessoas. Em todo o mundo, membros desse clube convivem com a suspeita de que podem ser alvos da Rússia para operações de vigilância, sequestro ou assassinato. Nessa época, jornalistas e ativistas da oposição russa exilados estavam adoecendo, aparentemente vítimas de uma série de envenenamentos. Não foram fatais, mas produziram efeitos alarmantes, incluindo sinais de psicose.

Toda vez que os exilados de Putin ouvem falar de incidentes como esse, buscamos todas as diferenças que existem entre nós, todos os motivos pelos quais seremos poupados: não somos tão conhecidos a ponto de chamar a atenção, ou somos conhecidos demais para sermos atacados. Não fomos tão duros ou tão políticos em nossas declarações, ou já faz tempo suficiente desde que partimos, ou tivemos o bom senso de nos estabelecer em um país seguro.
É sempre uma tarefa inútil. Jornalistas investigativos trabalham encontrando padrões, e o terror funciona por ser aleatório. Quando duas mulheres que conhecíamos receberam a confirmação de que haviam sido envenenadas e outras apresentaram sintomas alarmantes, começou a parecer que qualquer um poderia ser um alvo, e todos eram. Quando outros conhecidos pareciam raivosos, impulsivos, fora de si, tanto Grozev quanto eu nos perguntávamos se eles também haviam sido envenenados — como se viver no exílio com um alvo nas costas não fosse motivo suficiente para agir de forma errática.
Sentado no shopping, Grozev me contou que policiais haviam encontrado recentemente mensagens de texto nas quais os espiões búlgaros descreviam a invasão de seu apartamento em Viena dois anos antes. Talvez para aliviar o clima, ele leu algumas das mensagens para mim.
“‘Entramos no apartamento e fomos direto para o cofre.’”
“Espere”, interrompi. “Você tem um cofre?”
“Claro que não.” Ele não tinha cofre. Estava sempre perdendo coisas — o laptop, a carteira de motorista.
Grozev soube do arrombamento mais de um ano depois, mas quando contou à família, sua filha, Sophia, lembrou-se de que, mais ou menos naquela época, eles tinham visto um homem tirando fotos dos dois em um restaurante indiano. Ambos se lembravam da aparência dele, e Grozev conseguiu conectá-lo, por meio de fotos no Facebook, à mulher búlgara que havia feito a solicitação de amizade. Sophia identificou o homem entre os suspeitos indicados pela polícia, que confirmou que ele realmente estava em Viena no dia do arrombamento. Assim, um sexto suspeito foi preso, e Sophia começou a pensar em seguir o exemplo do pai no jornalismo investigativo.
Grozev ficou abalado. “Meu filho ficou o tempo todo jogando videogame no quarto. Se ele tivesse se levantado para fazer xixi, eles o teriam matado.” Além disso, ele ficou impressionado com a extensão das imagens de vigilância que a polícia lhe mostrou e o fato de que elas incluíam o apartamento de seu pai. “Agora acho que é igualmente provável que ele tenha sido assassinado.”
Quando visitou a família, Grozev estava sob uma segurança extremamente rigorosa — “vigilância 24 horas por dia, 7 dias por semana”, como ele descreveu — e isso não estava ajudando seu casamento. “Semanas em prisão domiciliar com a polícia no local provavelmente mostraram o quão insustentável é a situação”, ele me disse quando retornou.
Grozev estava se tornando uma pessoa sem ado. Ele vivia no exílio. Seus pais estavam mortos. Suas aventuras com von Habsburg foram suspensas por tempo indeterminado. Seu casamento estava em dificuldades. Seu o aos objetos físicos de sua vida antes de janeiro de 2023 era incerto. Tudo o que ele tinha era uma pequena mochila preta com seu laptop, quando conseguia se lembrar onde a havia deixado.
Com pouca escolha, Grozev começou a se acostumar com Nova York. Ele desenvolveu uma rotina de trabalho e começou a se barbear novamente. Marsalek, o ex-executivo financeiro de alto escalão, estava se adaptando a uma vida sem glamour na Rússia. Grozev o localizou em uma triste armadilha para turistas no Cáucaso do Norte. “E aqui estamos, sentados”, disse-me Grozev. Era um daqueles dias de verão em que Nova York inteira parece cenário de comédia romântica. Estávamos sentados ao ar livre, comendo bem. “Pequenos momentos de vingança”, disse ele.
O julgamento dos supostos assassinos de Grozev começou no final de novembro do ano ado no Old Bailey, o prédio do Tribunal Criminal Central de Londres. A conspiração contra Grozev era mortalmente séria, mas os detalhes, conforme surgiam em mais de 70.000 mensagens de texto arquivadas, horas de vídeo e uma pasta inteira de gráficos ilustrando o momento das operações e o fluxo de dinheiro, eram, por vezes, ridículos. Os líderes do grupo usavam os pseudônimos Jean-Claude Van Damme e Jackie Chan; eles se referiam aos membros de escalão inferior da rede de espionagem como “minions”, um termo com o qual aparentemente estavam tão comprometidos que, entre os objetos apresentados como prova — e ados aos membros do júri — estava uma câmera de vigilância escondida na flor de um brinquedo dos filmes “Meu Malvado Favorito”. O segundo em comando recrutou sua namorada e sua amante para a operação de espionagem, escondeu a existência de cada uma delas da outra e mentiu para ambas sobre ter câncer, chegando a enviar uma foto sua com papel higiênico enrolado na cabeça para convencer uma delas de que estava se recuperando de uma cirurgia. Ela acreditou nele.
Ele havia dito às mulheres que elas estavam trabalhando para a Interpol e disse a mesma coisa ao ex-namorado de sua amante, quando os búlgaros o recrutaram. Em um interrogatório policial apresentado ao júri, o ex-namorado foi questionado: “Quem é a Interpol para você?” “Dos filmes”, disse ele. “Eles só, hum, perseguem criminosos.” Ele acrescentou: ”Neste momento, é a coisa mais idiota que já fiz na minha vida”.
Metade do grupo se declarou culpada das acusações de espionagem e, no final, apenas os três — as duas mulheres e o ex-namorado, o homem que a filha de Grozev identificou — foram a julgamento. Gaberova, a ré mais jovem, e Bizer Dzhambazov, o segundo em comando, foram presos enquanto dormiam juntos. Gaberova gritou para o amante: “O que você fez?”. Seu advogado de defesa apontou isso como evidência de que ela mesma nunca considerou que pudesse estar fazendo algo errado. Gaberova disse ao tribunal que achava que Grozev era “um mau jornalista”. Os três réus, ao que parecia, haviam sido enganados pela paixão.
Assistir ao desenrolar do julgamento foi uma experiência surreal para os alvos dos espiões. Em pelo menos uma ocasião, o grupo conseguiu reservar uma agem aérea para um de seus membros no assento ao lado de Dobrokhotov; usando uma câmera escondida, ela capturou um longo vídeo dele e anotou a senha do seu telefone. Dobrokhotov descobriu que estava sob vigilância quase desde o momento em que saiu da Rússia em 2021. Em Viena, ele havia alugado um quarto na rua de Grozev. Os espiões também estavam alugando um quarto naquela rua — bem em frente a Grozev, a algumas portas de distância de um novo e notavelmente bom café expresso. “Sempre nos perguntamos como ele se mantinha em atividade, já que Christo era sempre o único cliente”, me contou Dobrokhotov. O café expresso fechou depois que Grozev deixou a Áustria e a rede de espionagem foi desmantelada.
Há algo profundamente insultuoso em ter sua vida virada de cabeça para baixo por pessoas que se autodenominam Jackie Chan e Van Damme e podem ser convencidas de que papel higiênico enrolado na cabeça de alguém é prova de uma cirurgia de câncer. Até mesmo o valor envolvido, pelo menos nesta parte da operação, foi comparativamente modesto: apenas algumas centenas de milhares de dólares.
O julgamento parecia ter um caráter improvisado e fictício. Até mesmo o traje típico dos tribunais britânicos — as becas pretas e perucas brancas dos advogados e a toga vermelha do juiz com punhos de pele branca —, em vez de elevar o nível do processo, dava a impressão de que todos estavam apenas fingindo. Exceto pelo fato de que Putin claramente queria que esses dois jornalistas fossem caçados e mortos.
Em março, um júri proferiu seu veredicto: assim como os três que apresentaram confissões anteriores, Gaberova, Katrin Ivanova e Tihomir Ivanchev eram culpados de espionagem. Antes da sentença, Grozev apresentou uma declaração de impacto da vítima de duas páginas. Sem o seu humor habitual e com pouca elaboração, ele enumerou as consequências devastadoras da campanha do Kremlin contra ele: separação da família, hipervigilância, ansiedade, sono interrompido e o custo de manter duas casas.
A sentença foi televisionada. Grozev assistiu de um escritório do promotor em uma capital europeia com um grupo de policiais. Foi, como ele gostava de dizer, surreal. “Adorei a apresentação”, disse ele. “O juiz deixou claro que não engoliu a bobagem deles de que não sabiam” que estavam trabalhando para a Rússia. As sentenças, de cinco a 11 anos, pareciam mais longas do que eram: segundo as diretrizes do Reino Unido, os espiões condenados poderiam cumprir apenas metade de suas penas nominais atrás das grades. Gaberova, por exemplo, provavelmente será posta em liberdade condicional em alguns anos.
A imprensa londrina cobriu o caso como um avanço. A Grã-Bretanha não mais ignoraria enquanto bilionários russos usavam o país como seu playground e agentes russos como seu campo de extermínio. “No Reino Unido, este é o maior caso de espionagem que eles já processaram desde a Guerra Fria”, disse Grozev. “Eles veem isso como um tapa na cara de Putin. Na Rússia, é visto como uma vergonha — os seis búlgaros eram descartáveis. Eles até têm um termo para isso: ‘dropy’, do inglês ‘to drop’ (deixar cair).” A operação tampouco foi um fracasso completo, do ponto de vista do Kremlin: um acervo de dados de vigilância sobre Grozev e Dobrokhotov havia sido entregue à inteligência russa. “Haverá novas tentativas”, previu Grozev. “Outras unidades estarão ansiosas para provar que podem fazer melhor. É assim que eles funcionam.”
Antes de deixar Nova York para acompanhar a sentença, nos encontramos para um café. Ele estava frustrado por não ter o a todas as evidências reunidas pela Polícia Metropolitana. Tinha certeza de que poderia encontrar informações que eles haviam perdido, pistas que o ajudariam a encontrar outros envolvidos, permitindo-lhe resolver o maior caso de sua vida — o caso do qual sua vida talvez dependa.
É claro para Grozev que ele, e talvez ainda mais Dobrokhotov, que é russo, correm risco de vida onde quer que vão na Europa. Os Estados Unidos costumavam ser seguros. Mas mesmo sob o governo Biden, havia muitos dissidentes russos detidos pelo ICE. O governo Trump ameaçou deportar pelo menos uma dissidente de volta para a Rússia, onde ela quase certamente seria presa. A força-tarefa de influência estrangeira do FBI, que costumava proteger dissidentes estrangeiros nos Estados Unidos, foi dissolvida. E se o governo Trump decidisse fazer algo de bom para Putin?
Grozev me lembrou que eu também poderia ser um belo presente, já que a Rússia tem um mandado de prisão contra mim. Ressaltei que ele era ainda mais “procurado”. Mas para onde ele poderia ir? “Estou perturbado por não saber onde é minha casa”, disse Grozev.
Sua filha está prestes a se formar no ensino médio e seu filho está concluindo a faculdade de medicina. Por muito tempo, ambos presumiram que poderiam se juntar ao pai nos Estados Unidos, mas isso não parecia mais óbvio. Nada mais era.
“Sua mulher ainda está casada com você?”, perguntei.
“Acredito que sim”, disse Grozev. “Não nos vemos, mas somos muito amigos.”
Sob qualquer aspecto, Grozev venceu esta rodada. Ele está vivo. Marsalek está preso na Rússia e seus subordinados estão presos na Inglaterra. Mas ali estava o preço que Grozev pagou por sobreviver: sua família, seu lar e a possibilidade de se sentir seguro em algum lugar do mundo. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL